25.10.11

Naftalina

Por Sealvia

Encontrei uma carta dele escondida dentro de um livro na estante, depois de anos. Eu já não conseguia ler sem meus óculos e isso somado à minha coreografada rotina foram impedimento suficiente para que eu me afastasse da biblioteca. Não que a descoberta prematura tivesse afetado o rumo de nossas vidas, mas ao menos eu teria tido a chance de compreender tudo, e de me compreender pelos olhos dele. Encontrar uma explicação. Isso muitas vezes é tudo o que uma pessoa precisa para descansar em paz.

“Mãe,

Gostaria que um dia tu soubesses como me sinto, pois nunca tive coragem que bastasse para me confessar. Também por isso é que deixo para o acaso a tarefa de mensageiro. Não me seria fácil encará-la sob o peso da verdade e menos fácil ainda seria confessar em tua presença tudo aquilo que não suporto em ti e em nossa casa.

Lembro-me doloridamente dos meus dias de criança, da nossa reclusão, da austeridade de papai e dos minguados passeios de domingo. Não me creio capaz de compreender os teus motivos para ficar e é por isso que nem peço que tente compreender o meu para partir.

Minha inquietação começou justamente após a partida dele. Eu percorria os cômodos da casa numa espécie de ronda inútil e tudo o que encontrava eram portas e janelas cerradas. Toda aquela escuridão me angustiava e eu sentia meu peito encolher-se a cada inspiração. Sei que tu sofreste também, minha mãe, e sei do consolo que era para ti saber que atrás das portas daquele armário no quarto grande jaziam as últimas lembranças dele. Sei da esperança que tu nutrias em reencontrá-lo e é por isso que me calo. Mas não pude suportar o dia em que abri aquelas portas e encontrei nosso tesouro profanado por um mofo branco e fino que dominou de imediato minhas narinas.

Meu corpo deu a resposta primeira e ela veio sob a forma de uma saraivada de espirros nervosos. A memória da presença paterna ameaçada foi o que me impeliu a sair em busca de algum antídoto. Era cedo e por isso fui caminhando sem pressa até o mercado em busca de naftalina. Ao passar pela praça fui espectador de uma cena inesquecível.

Ele era moreno e estava em pé, diante de um banco de praça coberto com jornal e uma trouxa imunda. Sorvia aqueles primeiros raios de sol como um bebê, com toda a pele, os olhos fechados de prazer, um prazer que eu nunca havia experimentado. Trajava roupas velhas, porém distintas e limpas, mas seu cabelo desgrenhado dizia que há muito não via pente ou navalha.

Parei para observá-lo a uma certa distância e pude ver quando ele se espreguiçou feito um gato, molhou o rosto com a água do chafariz e voltou feliz para o banco, sentando-se com pose e pompa, mergulhando na leitura do jornal que provavelmente havia lhe servido de cobertor durante a noite.

Aquela cena me atingiu em cheio. Tudo ficou pior. Não conseguia nem respirar direito então e me custou muito terminar o caminho até o mercado e voltar com a naftalina. Já em casa, quis abrir portas e janelas mas não me permitistes, não foi? Por isso enchi aquele guarda roupa de naftalina.

Desde então não tive mais paz. A naftalina tornou-se um cheiro-marco do meu sofrimento, da minha, e da tua prisão ao passado. Aonde quer que eu ande, aquele cheiro me acompanha, suscitando pensamentos e ressuscitando até o que eu já enterrara no inconsciente. Um dia espirrei e vi o rosto de meu pai, noutro dia o cheiro desceu pela garganta e agarrou-se ao estômago como um soco, a polícia arrombando a nossa porta de entrada, e ele indo, para não mais voltar. Esta é a certeza que a naftalina me dá.

Foi por isso que decidi fazer a limpeza às escondidas. Mas agora sabemos que de nada adiantou. Continuaste cultuando esse museu vivo que se tornou a nossa casa.

Quanto a mim, inspirei-me na liberdade e na beleza do homem da praça e vou-me embora, em busca do sol.


Mesmo não tendo cumprido a promessa, de alguma maneira ele me abandonou. Nunca mais se sentou a meu lado nas noites de domingo, quando a saudade era tanta que ocupava a poltrona e todo o meu coração. Era triste vê-lo sair nas manhãs e não estar acordada quando ele retornava. Por isso talvez tenha sido mais fácil aceitar sua mudança.

Não me queixo do passado, apenas fico imóvel para que ele permaneça assim também.

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