29.5.05

Visita

Dez anos depois. Folha do 1º de janeiro da agenda de 90. Caneta rosa. Meia luz. O fluxo...

Estar aqui significa muito pra mim. Foi aqui que eu fechei uma porta e abri uma janela. E eu não olhei pra ver o que estava me esperando na volta, eu só... pulei.

Em meio a todas as coisas, sapatos 36, bichos de pelúcia e recortes de revista, que não são mais meus, eu encontrei também vestígios, ricos vestígios, pistas do que eu deixei pra trás quando resolvi pular pela janela. Não, eu não sou mais capaz de abrir a janela sem fazer barulho, agora é só um olhar que ela grita, pra mim!

Mas nem sempre foi desse jeito...

A vista do lado de fora era tão tentadora naqueles dias. Era a noite, com a lua e todas as suas estrelas sorrindo pra mim e me fazendo pensar em promessas, sonhos, jamais realizados. Era a grama molhada e o perfume, mas que perfume de rua, rua molhada quase seca. E olhar pra essas letras, que vão tomando uma forma própria é a melhor maneira de acreditar que tudo existiu realmente e aconteceu na minha vida.

Transpor barreiras, vencer etapas até chegar aonde se quer chegar. Tudo fica mais fácil quando um pedido é feito a uma estrela. A primeira da noite. E quantas vezes esse pedido foi feito! Decorá-lo era minha diversão favorita de então, quando lá vinha a estrela, o pedido já estava na ponta da língua, da mente. Pronunciar, fazer a voz ser ouvida, isso jamais. Pedidos são segredos e não se abre mão de segredos. Principalmente se forem tão queridos e afagados quanto os meus.

Saudade daqueles dias, em que tudo o que você faz vira história pra contar. Olhando assim de longe, nada mudou. Tudo mudou.

Porque não somos capazes de aprender a esquecer, porque não acreditamos que ao olhar o passado viraremos estátuas de sal...

Que sede! Sede de viver, viver! Com muito amor.

21.5.05

Listinha de coisas que gosto de ouvir *...

Da minha filhinha:

  • Essa maçã tá muito escura, mãe. Não tem uma mais acesa?
  • Eu não tava com fome. Tava com saudade de comer!
  • Fala mais alto, ce ta falando muito embaixo...
  • Ô tia da minha prima, vem cá.
  • Depois que eu fizer 5 anos, faço 1 de novo e aí eu viro bebê outra vez, né?

* Autor original do título e "muso" desse post: Calendas

13.5.05

Silêncio

Apago as palavras erradas, procuro as frases certas, mas nada serve hoje.

O silêncio se materializou na minha alma e eu o afaguei e alimentei, por isso ele cresceu tanto.

Ele me isola e me afasta, mas tenho a consciência de que muitas vezes também me protege. Muitas vezes, de mim mesma.

3.5.05

Proverbial Sabedoria

Como quem não tem o que fazer, inventa, achei por bem retocar umas coisinhas aqui e ali nesses provérbios:


- Se conselho fosse bom... esse provérbio já teria caído em desuso.

- Mais vale um bom provérbio na boca do que dois minutos de silêncio voando.

- Quem com provérbio fere, com provérbio será ferido.

- Amanhã é outro provérbio.


E o irretocável:

- Bacalhau quer alho.

2.5.05

Clotilde

Está tudo lá, que eu sei. Não me perguntem como, mas eu sei... A alameda de carvalhos e sobreiros, as casas de pedra atrás do riacho, a fonte com a melhor água da região e a ruazinha estreita e torta que acolhe uma portinha azul, com postigo, sim senhor.

E se alguém ali bater, há de vê-la aparecer pela pequena janela, e por certo há de ser recebido por ela, que agora não se veste mais de encarnado. Como uma moura, traz um lenço negro na cabeça atado ao queixo, e mesmo sob o escaldante sol do verão resignadamente enverga o luto pelo nosso amado José.

Mas espia com atenção, porque ainda hás de ver um brilho em seus olhos. Ela o convidará a entrar para um golito de vinho e com alguma sorte estará partindo um pão quentinho. Não qualquer um, mas o melhor, mais redondo e cheiroso pão já devorado por um mortal. Aceita, e aproveita para sorver com os olhos, os poros e a alma tudo o que lhe for ofertado. Olha que casica mais linda, e repara no fuso perto da escada, por onde surge um gordo novelo de lã enegrecida. Olha que lindos pratos ela tem nas paredes amareladas, e como a cor ainda fala no chão e faz seu caminho até o lume. Então enche os pulmões por mim, com o aroma da marmelada no tacho e os chouriços que pendem do teto.

Escuta suas histórias e acima de tudo, pensa em mim, quando ela abrir as portas de madeira do pequeno recinto para lhe mostrar o seu maior tesouro: um bezerrinho, acabadinho de nascer.

Leva até ela o meu abraço e o meu amor eterno...