29.10.04

Legenda

Culpa de Estimação
Cazuza / Roberto Frejat

Por onde eu ando
Levo ao meu lado
A minha namorada
Cheirosa e bem tratada

Não sei se o nome dela
É Eva ou Adão
É religiosa por formação
A minha culpa de estimação

Se alguém me ama
Ela diz que não
Se nem me notam
Ela diz: "Por que não?"

É a minha companheira inseparável
Sua fidelidade é incomparável
E me perdoa por não ter razão
A minha culpa de estimação

E me aceita o pior dos tarados
Um ser mesquinho tropeçando no nada
Guarda segredo e diz que não é chantagem
Que ninguém vai saber das minhas bobagens
Me dá um calmante e diz que é pra eu ser bom
A minha culpa de estimação
(Ela é de estimação)

26.10.04

Embaixo da mesa era bom.

As notas batucavam na madeira, o carpete sacudia de leve e eu ali podia ser eu...
Lalo e as borboletas, Cat e os gatos, Billie, Chico, Tom e Elis e a lua clara... piano, violino, harpa e clarineta.
Era bom parar de pensar um pouquinho e deixar o trabalho pra eles, só pra variar. Eles me levavam pra dentro de mim e me diziam tudo o que eu precisava saber, tudo o que eu queria ouvir sobre o mundo e a vida.
O pé descalço ainda sente o verde acre, a mão direita brinca com a esquerda de passear da barriga até a nuca, ida e volta.
Embaixo dessa mesa eu posso cantar em paz, praguejar em paz, sofrer em paz, sonhar em paz...

22.10.04

Em pé com a pá

"Hush now baby, baby, dont you cry. Mother's gonna make all your nightmares come true. Mother's gonna put all her fears into you. Mother's gonna keep you right here under her wing. She wont let you fly, but she might let you sing. Mama will keep baby cozy and warm. Ooooh baby ooooh baby oooooh baby, Of course mama'll help to build the wall. " (Roger Waters)

Tô pronta pra destruir o muro, mamãe...

19.10.04

Carrossel

A nuca molhada me diz que o verão já dá seu oi, mas o ar ainda está perfumado e o vento que veio de repente fez chover amarelo pela avenida. Eu queria ficar brava com a gota teimosa e com a gente que anda num ritmo diferente, mas a mão do moço na moto alcança a flor no meio do canteiro e o carinho que ele faz nela chega a me tocar.

7.10.04

Rapunzel

Ela era uma menina muito curiosa e não tinha medo de se arriscar em nome da satisfação de uma boa aventura, mas como bom macaco que mete a mão na cumbuca, ou vice-versa, um dia a menina resolveu experimentar aquele fruto proibido e por causa disso se exilou numa torre de concreto no cocuruto da cidade grande.
Do alto da sua torre ela podia ver o mundo, mas o mundo não podia vê-la. Era o que ela queria... Afastada dos amigos e longe da família, ela deixava os cabelos crescerem junto com a barriga e uma certa vergonha.
Ela tinha apenas uma boa janela com vista para a cidade, mas não precisava nem fazer tranças e muito menos atirá-las pra fora, porque o príncipe já estava do lado de dentro. Mas não podia ajudar muito porque naquela altura ele ainda estava cego.
O tempo passou e não foi pouco... Quase quatro anos pelo comprimento do cabelo.
Um dia o príncipe, que não estava batendo muito bem das bolas, resolveu sair numa andança pelo mundo e a menina que de moça já estava se tornando mulher valeu-se de sua ausência para voltar ao vilarejo dos pais. Foi então que ela começou a perceber que as longas melenas não lhe traziam nenhuma vantagem, pelo contrário, escondiam seu rosto e atrapalhavam um bocado a sua visão, e seu peso ainda atrapalhava o caminhar. Mesmo assim ela não queria tocar no cabelo.
O que ela não esperava era envergar sob o peso da cabeleira, mas foi o que de fato aconteceu. Envergada e quebrada foi como o príncipe a reencontrou no seu retorno. Comovido, ele chorou lágrimas sinceras que lavaram seus olhos e livraram-no da cegueira, e quando ele voltou a enxergar a primeira coisa que viu foi a cabeleira de sua amada. Tomado por uma fúria principesca ele tosou os fios, liberando-a daquele peso terrível e enfim podendo enxergar seus olhos.
E assim eles puderam continuar a história e foram felizes em todas as festas, formulários e reuniões de família. Tantas quantas suportaram...

5.10.04

Máquina do Tempo

Conhecia muitas formas de visitar o passado, mas me esquecia que muitas vezes é o passado que nos visita. E quando a gente está ali, mais agarrada que nunca ao presente, é que ele vem e cai no colo, entra pelas narinas, toca no sino do ouvido e badala o coração.

Como ontem...

Caixa preta, caixa do tempo, caixa vermelha, coração onde cada pedacinho da minha história, até aqueles que eu finjo que lembro ou com esforço esqueço, foram sendo com carinho depositados. Uma a uma as fotos cruzavam o Atlântico. Dentro de envelopes pardos, brancos, decorados, “em mãos” ora amorosas ora amaras, presenteadas ou surrupiadas elas formavam uma colagem, a minha linha do tempo pelos olhos dela. Uma coleção que eu não conhecia e que não queria conhecer. Não agora. Não como foi...

Elas cruzaram de volta o Atlântico juntas e voltaram às minhas mãos, e eu chorei vendo o sorriso banguela, as pernas tortas e o cabelo quase branco de tão loiro, o sorriso sapeca, a longa cabeleira de Rapunzel que eu havia renegado...

Tudo assim, de uma vez... e o que é pior: sem ela...