30.1.06

O Relógio Familiar

(A Persistência da Memória, Salvador Dali, 1931)

Acho que a culpa é dele por aquele lado da família ser tão rígido quando se trata de horários e compromissos. Mais que pela pontualidade, seus membros sempre foram marcados pela antecipação, acusados e apelidados de apressadinhos.

Quando ele ainda morava em sua casa original (a casa do meu avô) seu posto era o meio da habitação, no alto de uma estante, de onde ele reinava onipresente. Ele ressoa a cada quinze minutos, nos lembrando a toda hora que o tempo passa, que estamos sempre atrasados, que precisamos de vigilância. Ele não tiquetaqueia como um relógio de cabeceira, mas tem uma capacidade sobrenatural de entrar em ressonância com as batidas do meu coração, principalmente quando eu era criança e tentava dormir no quarto ao lado da sala onde ele ficava.

Aliás, ele era muito eficaz em nos avisar que era hora de acordar (isso pra quem conseguia se acostumar às suas badaladas e dormir com os toques regulares), que era hora de almoçar e jantar, e sabia mais que nossos próprios estômagos que estava na hora de enchê-los.

Sua antítese eram as risadas e as festas dominicais, mas mesmo com muitas delas não foi possível evitar que ele marcasse as gerações que foram criadas sob a sombra de seus ponteiros vigilantes, de modo a se tornaram pessoas naturalmente desesperadas para estar em dia com as horas.

Depois que o patriarca foi para onde não existem relógios, ele ficou um tempo esquecido, renegado, até que a filha do meio (minha mãe) se dispusesse a restaurá-lo e reativá-lo levando-o para um lugar de destaque em sua própria casa.

Dia desses, visitando-a, me arrepiei ouvindo o velho chamado para o meio dia. Consultei o relógio digital e constatei que o pendular estava adiantado em dez minutos e não pude deixar de fazer piada com o fato. Minha mãe então me explicou que por mais que ela acerte o velho relógio ele insiste em fazer o inverso do que se espera de um relógio e se adianta sozinho.

Deve ser o costume. Ou talvez uma homenagem que nos faz lembrar de meu avô, que sempre dizia:

- Relógio que atrasa não adianta!

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